Na minha vida pessoal e nesses vinte anos de prática clínica tenho vivido e acompanhado inúmeras situações de pessoas sofrendo pela dificuldade de conciliar internamente dois movimentos psíquicos antagônicos e necessários para o desenvolvimento. O primeiro aponta para a expansão e afirmação do eu, levando a um caminho de realização, diferenciação e autonomia. O segundo, um impulso de manutenção, de priorizar o pertencimento, a identificação com um outro, tendendo à fusão, a dependência e continuidade do “status quo”

 

Desde a mais tenra infância nos deparamos com essas tendências. Precisamos do aconchego da mãe, ou de qualquer pessoa que exerça a função materna, que cuida, nutre, embala, confirma, preenche, sendo continente às nossas demandas. Mas, também necessitamos crescer, ampliar os horizontes, experimentar o novo e, assim, sair da simbiose com o materno.

 

A quebra dessa fusão e a necessária entrada de um terceiro, representado pelo pai, ou qualquer outro que exerça a função paterna, insere o bebê no mundo, no social, nas regras, o que faz parte de uma dolorosa e estruturante fase do desenvolvimento psíquico. Pois bem, esse enredo se repete ao longo da nossa história em diferentes relacionamentos ou fases do ciclo de vida, nos endereçando à essas primeiras marcas.

 

Dessa forma, cada experiência que suscita a abertura para o novo, para a ampliação dos horizontes, para o amadurecimento e consequente realização de desejos, toca nas feridas inconscientes dessa primeira saída da “simbiose” com a mãe. Isso pode acontecer na adolescência, causando “confrontos” dolorosos com os pais, com o término de um namoro ou casamento, com a saída da faculdade e entrada no mercado de trabalho, com o distanciamento de um grande amigo ou grupo de amigos, com uma mudança de cidade, com o início de um novo emprego, enfim, são inimagináveis as situações que podem remeter a essa fase primária da vida.

 

Ou seja, essa tensão faz parte do processo de desenvolvimento emocional e, geralmente, causa um misto de dor e de libertação, do luto de uma etapa que finaliza e do medo do novo. Mas, algumas pessoas experimentam essas etapas de maneira disfuncional, gerando um adoecimento psíquico ou um sintoma físico. Nesses casos particulares, se faz necessário o acompanhamento especializado.

 

De qualquer maneira, no geral, crescer é isso, um processo contínuo de escuta e acolhimento do nosso desejo e da conciliação com os outros da nossa vida, sejam eles, mãe, pai, marido, esposa, irmãos, chefe, amigos, trabalho ou grupos. Afinal, são nessas relações que vamos nos construindo, aprendendo a nos respeitar, reconhecendo nossos limites e nossos recursos, identificando o que podemos priorizar e arcando com as consequências decorrentes das nossas decisões.

 

Portanto, suportar uma dose de conflito interno e interpessoal é parte inexorável do viver. Cientes de que não há regras, tão pouco um caminho claro e linear a ser seguido, devemos apurar a escuta dos nossos desejos para não sermos tragados, seduzidos ou aprisionados pelo outro. Isso não acontece sem esforços, sem riscos, sem intempéries, mas sua contrapartida seria negligenciarmos nossos desejos, calando a nossa voz e essa possibilidade pode nos levar à uma vida vazia de sentido, quando não, a um real adoecimento.

 

Como diz Jung: “Só aquilo que realmente somos tem o poder de nos curar.” (1971, p. 57). Por isso, cuidemos de nos realizar, ainda que isso implique em arcar com uma sensação de consciência pesada, de senso de deslealdade a certos vínculos, mas, é isso, o amadurecimento tem um custo e, nesse caso, abdicar da inocência é uma parte desse processo, afinal, não podemos servir à dois senhores!


Dra. Raquel Brasil Lima
Psicóloga Clínica
CRP 11/0119
Especialista em Abordagem Sistêmica da Família e em Psicopatologia Clínica.
Atende adolescentes a partir de 16 anos, adultos, casais e atletas